Arquitecturas incompletas: como se desenha em Lisboa e como se actua em Caracas


A arquitectura portuguesa é, de um ponto de vista processual, lenta. Lenta por tradição, lenta por ideologia.
Nao interessa proferir nomes, porque todos os temos na cabeça... Sabemos quem sao os pais da nossa cultura arquitectónica actual, sabemos quem foram os nossos professores na faculdade, sabemos o contexto histórico, político e social em que a arquitectura se desenvolveu em Portugal ao longo dos últimos anos.
A cultura de "resistência" que a caracteriza é sintoma de teimosia. E ao mesmo tempo, de comodidade. No entanto, esquecemo-nos que a arquitectura move-se - hoje - em terrenos muito mais amplos que a simples arte do desenho e refugiamo-nos invariavelmente na pureza de uma ética que parece ser só nossa, de uma moral académica que se perdura no tempo e consequentemente, no espaço.
A finura de um traço, a insistência neste e naquele detalhe, a repetição de gestos e gostos sao valores que adquirimos desde o primeiro momento. Por mim falo, mas genericamente o constato.
Desenhar em Lisboa parece ser sinónimo de exorcização de fantasmas alheios ou de condutas dissonantes, embora já tenha a voz gasta, pouca memória e surdez própria de pessoa idosa. Nao tem arriscado escrever diferente e nao parece querer aproveitar o cansaço da velha idade para se alimentar com novas ideias e novas formas de pensar a disciplina.
Para desenhar Lisboa de uma forma mais complexa e menos previsivel (mais interessante, portanto) o discurso tem que ser multidisciplinar, culturalmente diversificado e crítico.
A artesania que ainda caracteriza o pensamento e acção do arquitecto em Lisboa tem que dar lugar a uma densa e apertada rede cultural que obrigue a sociedade a evoluir e que nos obrigue a assumir a arquitectura nao como um símbolo da resistência, mas como uma simples e muito interessante forma de comunicarmos uns com os outros.
Cedric Price disse um dia que "o diálogo será talvez a única excusa ou razão de ser da arquitectura." E dentro desta prespectiva, registe-se que muita da (admirada) arquitectura produzida em Portugal é muda, intrínseca e inabalavelmente muda...













A realidade de Caracas é outra. Aqui, a arquitectura nao tem nome, exceptuando honrosos casos...
Na capital venezuelana, reino bolivariano e chavista, metade da população, cerca de 3 milhões de pessoas, vive em assentamentos apelidados de informais, ou seja, áreas essencialmente urbanas sem qualquer tipo de planeamento ou legislação que as abranja. É nesses espaços que crescem as chabolas, os barrios, as favelas...
A imagem urbana gerada por esse facto tem tanto de assustador como de poético. Assustador porque é impossivel dissociar a imagem do seu conteúdo real, ou seja, é impossivel separar o significado do significante, e poético porque a intensidade dramática e o contraste entre a teia de aranha desses asssentamentos e a cidade formal é das imagens mais poderosas que o Homem, ao longo do tempo e no seu conjunto, foi capaz de criar (involuntariamente?!) até hoje.
Os assentamentos informais tornaram-se, quer queiramos quer nao, numa situação normal, do dia-a-dia, num dado concreto que nao adianta menosprezar ou ignorar.
As ferramentas utilizadas para lidar com esse facto prendem-se mais com a arte política, cultural e social que propriamente com a arte do desenho. Por razões mais ou menos fáceis de entender (nao me vou alongar sobre elas), o design aqui é a última etapa de um longo processo.
Em complexos espaços urbanos, onde o uso, significado e pertença sao debatidos e contestados permanentemente, nao adianta aos arquitectos proporem soluções radicais, com cheiro a "tabula rasa". Há que admitir que, em certos casos, há problemas sociais que nao requerem soluções espaciais. E há que ter coragem para assumir que pode haver aspectos do foro social e político que ajudem a resolver determinados problemas espaciais...
O entendimento deste facto obriga o arquitecto a ser outra coisa muito antes de ser arquitecto. Obriga-o a ser um activista social e politico, com uma visão muito clara dos problemas da sociedade e da cidade em seu redor. Tem que partir de si a identificação dos problemas, o estudo de possíveis soluções, a mediação com os diversos agentes e, em última instância, a autoria da proposta arquitectónica.
As palavras de Cedric Price poder-se-iam aplicar aqui de novo, e desta vez com um registo bem diferente...
















Ambas as visões que acabo de descrever constatam realidades e maneiras de encarar a arquitectura - por parte dos seus próprios profissionais - de forma completamente distinta. Enquanto a arquitectura portuguesa assenta em bases já sedimentadas pelo tempo (e comprovadas espacialmente), a realidade caraquenha (ou de qualquer outro assentamento urbano "informal") apresenta demasiada instabilidade para poder ser lida de forma genérica e abrangente.

A análise da primeira é tautológica. A da segunda, é pontual, pessoal e muito específica.
No primeiro caso, e embora alguma coisa pareça estar a melhorar (aguardo, por exemplo, com alguma expectativa o texto introdutório do Pedro Gadanho no seu Habitar Portugal 2006-08, que promete ser, segundo o próprio, a prova do início de um
more exhilarating scenario…) é inevitável continuar a ler e a sentir o peso das contradições que a vai sustentando. Ou seja, quando o discurso (que tem a mesma idade que a democracia) nao bate certo com a prática... A inocência e depuração evocada (renderizada ou maquetizada) em qualquer projecto ou encomenda privada desenhada em Lisboa nao revela consequência com a moral social e localmente enraizada proferida em qualquer discurso ou lida em qualquer memória projectual.
Ao invés, no segundo caso, a especificidade teórica e a realidade social/politica está de tal forma presente que se parecem sustentar a si próprias, relegando o design para uma fase posterior, talvez secundária, e a prática (a obra) para uma consequência de um sem fim de lutas e tomadas de decisões mais que complexas, extremamente desgastantes.

Em ambos os casos, a arquitectura revela-se incompleta, amparada pelo seu próprio peso e á espera de oportunidades (e vontades) que temos tardado em procurar. A riqueza de uma tem sido a lacuna da outra… Será que se pode aprender algo com isto?