“Os arquitectos sorriem ao ver a sua obra acabada. Mas sabendo que os arquitectos têm bastante pouco sentido de humor, o que os faz sorrir…?
Sorriem, por acaso, pela agradável sensação de terem conseguido a sincronia das suas obras com a racionalidade do mundo; pela naturalidade com que as suas pequenas construções se incorporam no marco criado pelo Construtor do Mundo? Ou, pelo contrário, riem-se do artificial dos seus actos, do absurdo daquilo que nos rodeia, das suas pequenas obras que se incorporam no caos já existente? Sorriem, vaidosamente, ao sentirem-se possuidores de uma verdade que, pensam, outros desconhecem? Ou sorriem com o cinismo daquele que já sabe que tudo é inútil e que todas as pedras deste templo que foi construído cairão inexoravelmente?
Sorriem, os arquitectos, como anjos ou como anjos caídos?”

(Mansilla+Tuñon, 2G nº27, 2004)

ARQUITECTURA, FILOSOFIA E ARTE
Breves notas para uma redefinição da noção de cultura arquitectónica

Qualquer semelhança entre a esquematização deste texto e a prática processual arquitectónica não será pura coincidência.

Contexto
A Mente. A ciência. da Arte.
B. Construir. Matéria.
Futuro? A liberdade!
Abnegação? Interrogação! Tudo!
Livros. Cheiros…
M. Pensamento. A… Ilusão. Não!
Espaço. Aberto. Sentimento. Emoção…
Vida!!

A Babilónia. A de todos os dias.
O atractivo mundo físico e a vontade de ver como cresce aquilo que cresce.
Porque cresce? Como se produz o seu crescimento?
O efeito borboleta.
O eterno ciclo de tudo. As influências e o devir. Deleuze e a sociedade contraditória do sujeito de mobilidade coerciva.
3 Leis da Física (ou: sobre a dinâmica das coisas)
1_ Não podes ganhar o jogo. 2_ Não podes empatar o jogo. 3_ Não podes sair do jogo.

Conceito
“As ciências que têm que ver com o cérebro e com a mente não se podem separar das preocupações filosóficas… Quem se interessa pela condição humana é um grande filósofo.”
(António Damásio, em entrevista a El País Semanal de 11Nov.2007)

Partindo da definição de filosofia como uma actividade intelectual que pensa e questiona tudo aquilo que nos rodeia, importará realçar que qualquer actividade humana, e saliente-se aqui a palavra qualquer, transporta consigo um pensamento, uma consciência e uma vontade que nos identifica e que é a essência da nossa visão sobre o Mundo. Ter a consciência da necessidade de possuir uma visão “consciente” sobre as
coisas (a arte só é arte quando é reflexo de um pensamento consciente e racional; pelo menos, desde Duchamp…) é condição indispensável no trabalho do arquitecto. De facto, só se poderá agir de forma plausível com a realidade exterior se possuirmos, no momento da acção, uma clara e desperta “intencionalidade na vontade.” (1)
Trata-se de um jogo de aparentes opostos:
Questionar…

“A interrogação é como uma faca que rasga a tela para se ver o que está por detrás.”
(Milan Kundera, "A insustentável leveza do ser")

…para poder, por temporários momentos, retirar pequenas mas saudáveis e necessárias conclusões (simples construções pessoais do Mundo).

? → !

Espaço + Matéria

A arquitectura admite o mesmo tipo de jogo simbólico no que concerne à sua linguagem específica. Avaliando os conceitos espaço e matéria de forma simples e imediata será fácil entender que quando nos referimos ao primeiro falamos de tudo aquilo que não é palpável, que não é cheio, que não é massa – é vazio; e que quando nos referimos ao segundo falamos exactamente dessas
coisas: do palpável, do cheio, da massa – do construído. Os dois juntos dão forma física ao Mundo; tê-las em linha de conta de forma autónoma seria admitir que a vida humana não poderá ter sentido tal como a conhecemos e/ou concebemos, pois ou tudo estaria deserto ou tudo seria um turbulento caos urbano (em muitos sítios é, de facto, esse o seu aspecto físico, mas seremos nós capazes de imaginar uma generalização de algum de estes dois estados…?). São estes portanto, mais dois termos antagónicos que dependem, invariavelmente, um do outro.
Se analisarmos, porém, estes mesmos termos de um ponto de vista mais amplo, num plano onde a filosofia e a arte se chegam a tocar, tentaríamos estabelecer certamente alguns outros paralelismos e comparações. Poderíamos considerar, porventura, a
matéria como algo pertencente a nós mesmos, ao ser humano, e ao que de mais valioso ele possui: o seu cérebro. Deixaríamos nesse instante de nos referirmos apenas ao meramente físico (produto humano) mas estaríamos a entrar num campo muito mais volátil e disperso (o nosso interior cerebral e suas infindáveis capacidades imaginativas). Desse ponto de vista seria então fácil fazer corresponder a matéria á zona mais espessa do cérebro e que é, simultaneamente, a maior responsável pelo processamento de toda a informação que a ele vai chegando: a massa cinzenta. Esta massa, ao conferir e instruir a informação recebida, está a dar forma, peso e consistência a essa mesma informação, está a materializar um sem número de dados e a torná-los legíveis e eficazes para a nossa própria existência – está a torná-los significantes. A este mecanismo atribuímos comummente o nome de racionalização.
Para a compreensão do nosso sistema cerebral não é suficiente, porém, analisar o processo que consegue transformar as informações; é preciso inteirarmo-nos de onde vem essa informação, ou melhor, como é que nasce esse dado informativo. E é através da junção das respostas a estas duas perguntas (Como é que nasce? Como se transforma?) que conseguiremos, nesta analogia concreta, justificar o nosso momentâneo afastamento disciplinar.
Um dos grandes logros do neurocientífico António Damásio (com quem iniciei atrás uma das partes deste texto) foi exactamente ter conseguido mostrar o papel central da outra parte do cérebro a que nos estamos agora a referir: a emoção. Através dos seus estudos na área da inteligência emocional, para além de demonstrar que não é possível a acção humana sem a existência de uma simbiose entre estes dois elementos (independentemente da
profundidade ou leveza que possam adquirir), reiterou afincadamente a ideia de que qualquer processo (de novo a insistência na palavra qualquer…) tem início através de uma dada emoção e é a partir da informação que ela (emoção!) possa ou não conter que se poderá atingir um nível diferente, para não dizer superior, de conhecimento, quando tal informação for processada na parte racional do cérebro. No entanto, quando isso se verifica, a emoção primária não é eliminada, apenas se transforma/desenvolve para um estado mais elevado de consciência. O dado a reter é então este: não é possível actuar sem que a emoção não interfira num qualquer processo de racionalização, pois são elas que dão inicio a esses processos.
Ora, esta sensibilidade emocional do nosso cérebro é, vistas assim as coisas, de extrema relevância operativa, pois poderá ajudar a entender determinadas posturas, atitudes, formas de ser e de actuar do ser humano e, para o que a este artigo diz respeito, ser alicerce da redefinição da noção de cultura arquitectónica que aqui proporei.
Retomemos a questão inicial da passagem simbólica da reflexão sobre a forma física para a forma mental humana. Porque ainda não está esclarecido o papel do
espaço sob esta nova perspectiva. Baseando-me naquilo que acabou de ser dito, poderei explicitar de uma forma menos intrincada aquilo que acabo de constatar…
O
espaço, em termos físicos, é, como referi atrás, sinónimo de vazio. Em arquitectura confundimo-lo, muitas vezes, com a noção de lugar. Em outras ocasiões atribuímos-lhe variadas denominações: falamos em zero, mencionamos o nada. Normalmente, para distinguir entre umas e outras recorremos a imagens: evocamos o deserto, o cosmos infinito, a imensidão do buraco negro... etc. Porém, a dificuldade revela-se quando não conseguimos traduzir em imagens aquilo a que nos queremos referir. Quando não conseguimos materializar o… nada.
Nestas situações, criamos, invariavelmente, metáforas e alegorias. Mas esse é o papel da nossa racionalidade... transformar (dar forma) a conceitos abstractos, que chegam ao nosso cérebro em forma de sensações. Dou como exemplo a existência de uma enorme quantidade de palavras (que usamos diariamente) que, embora tenham o seu concreto significado teórico, na prática, no real palpável, não têm tradução. Foram metaforicamente criadas pela racionalidade humana para explicitar uma dada sensação ou emoção. Enquanto que a
razão trabalha sobre algo já adquirido mentalmente, a emoção parte directamente da realidade exterior. Esta é a sua grande responsabilidade e, ao mesmo tempo, sua grande prédica. Não afirmo que as emoções partam do nada ou do vazio para se criarem…, afirmo sim que são elas as primeiras responsáveis pelo contacto do Homem com o Mundo/Natureza ao seu redor. De que forma poderíamos interpretar isto do ponto de vista da prática da arquitectura? Terá sentido esta anunciada relação entre o espaço físico e as emoções humanas?

Futuro (ou Obra)

Interpretar estas relações de uma forma directamente consequencial para a arquitectura seria extremar uma posição cujas bases são já de si bastante discutíveis. Ao fazê-lo estaríamos a centrar o discurso num campo abertamente filosófico (e, diga-se, de influências existencialistas…) que nos renegaria do papel prático da questão.

Dessa forma, o que me interessa, como arquitecto, realçar e concretar é:

1_ O importante papel das emoções no primeiro contacto com a realidade exterior sobre a qual iremos trabalhar. A tendência do Homem moderno em ver a razao como algo superior á emoçao é um dado cada vez mais questionável. Acredito que só sobreviveremos neste mundo global se conseguirmos entender o valor deste segundo aspecto e a importância moral que ele possui.

2_ O valor metafórico que adquire o espaço = vazio como elemento estrutural do conceito e forma arquitectónica. A imagem que idealizo é uma escultura de Eduardo Chillida. O espaço – tido como elemento estructural de um projecto de arquitectura – é utilizado, por este escultor espanhol, como elemento central da vida. Ou seja: espaço = vazio = vida!

3_ A importância de equilibrar as diferentes fases do processo de arquitectura. Tendo em conta as primeiras percepções espaciais (e sabendo que iremos (re)formar através da matéria), tentar perceber, caso a caso, qual deve ser a nossa aposta qualitativa. Este tempo inicial de qualquer projecto adquire um valor incalculável... Ainda que corra o risco de ser excessivo, direi mesmo que sem um conceito inicial forte nao se faz hoje um projecto de arquitectura válido.

4_ A necessidade de possuir – antemão – alguns valores interiorizados (ainda que estejam no nosso subconsciente), pois serão eles que irão Ver e Sentir a realidade exterior. A esses valores denomino de Cultura e Educação.


(1) Esta expressão é recorrentemente utilizada por Manuel Sérgio em “Para um novo paradigma do saber… e do ser”. Ariadne Editora. Coimbra, 2005.